Deveres do magistrado na questão da tolerância
Não tem incumbência de cuidado magisterial sobre as almas, mas apenas, como qualquer homem, um cuidado caritativo. Não pode forçar um homem a ser saudável ou rico contra a sua vontade; da mesma maneira, não pode salvar sua alma contra a sua vontade.
Pode-se fazer a objeção que há várias maneiras de ser saudável e rico, mas apenas uma de ser salvo. A isso, responde que: (a) mesmo que fosse verdade, restaria dúvida sobre qual seria essa maneira (cada um pensaria ser aquela que a sua própria religião recomenda); (b) o magistrado estaria na mesma posição de qualquer outro homem quanto à identificação e à escolha da via correta (poderia, sendo fiel de certa religião, supor que a sua é a verdadeira, mas também outro homem, fiel de outra igreja, se estivesse na posição de magistrado, suporia o mesmo em relação à sua religião); e (c) se o magistrado é livre para isso (para encontrar sozinho qual caminho leva à verdade), deve deixar que os outros sejam livres para esta tarefa na mesma medida.
Pode-se fazer a objeção de que tal decisão não cabe ao magistrado civil, mas à igreja, sendo o magistrado apenas o instrumento de imposição da via correta. A isso responde que: (a) a igreja da qual o magistrado seria instrumento seria apenas aquela da sua preferência; (b) é muito mais comum que a igreja seja influenciada pela corte do que a corte pela igreja; e, (c) logo, a situação em que o magistrado impõe os juízos da igreja é análoga aquela em que impõe suas próprias convicções religiosas. Relembra ainda que, devido à necessidade de convencimento íntimo, a imposição do magistrado não pode salvar a alma de quem quer que seja.
Libertos da dominação religiosa, os homens se reunirão em igrejas, as quais devem ser, em princípio, todas toleradas. A compreensão do modo como a tolerância do magistrado civil se exerce em relação às igrejas depende da distinção entre, de um lado, a forma externa e os ritos de culto e, de outro lado, as doutrinas e os artigos de fé.
Quanto à forma externa e aos ritos de culto, o magistrado não tem o poder de obrigar o uso de ritos ou cerimônias no culto a Deus, tendo em vista os já expostos argumentos da liberdade das igrejas e da necessidade de convencimento íntimo. Isso não quer dizer que o magistrado não tenha poder sobre as questões indiferentes (que não ajudam nem prejudicam a salvação). Esse poder o magistrado tem, mas o bem público, que é sua regra, jamais exigirá seu emprego para este caso. A igreja mesma tem poder de organização sobre as questões indiferentes de seu culto apenas na medida em que elas sejam simples circunstâncias, e não parte do culto em si, porque as que são parte do culto em si se limitam ao que foi posto pelas Escrituras, e não dependem da igreja. Da mesma maneira, o magistrado civil não tem poder de proibir os ritos e cerimônias já aceitos e usados no culto pelas igrejas que existem.
E se tais ritos e cerimônias envolvessem coisas desonestas e criminosas? Bem, estas não são permitidas nem mesmo fora do culto, não havendo motivo para o serem dentro dele. Mas se deve ter cuidado com a ideia de combater as igrejas que adotam práticas consideradas idólatras, porque (a) este motivo se presta para o combate a qualquer religião e culto (idólatra é sempre a religião do outro); (b) esta ideia se combina com interesses e varia com eles (o que é ou não idólatra varia com as circunstâncias da própria tolerância à religião alheia); e (c) tal mandamento (do combate à idolatria) está apenas na lei mosaica, mas não nos Evangelhos.
Quanto às doutrinas e aos artigos de fé, são em parte especulativos, em parte práticos. Quanto aos especulativos, não há muito a dizer, pois não podem causar injúria a outrem e recaem na necessidade de convencimento íntimo. Quanto aos práticos, existe certa sobreposição entre o que é moralmente exigido segundo a religião e segundo a sociedade civil. Essa sobreposição induz confusões, que devem ser evitadas.
Todo homem tem uma alma imortal apta à salvação, mas esta depende de sua fé e de suas ações nesta vida; além disso, todo homem tem também uma vida temporal na terra, que gera necessidades de conveniências externas, para as quais surgem a sociedade e o governo civil. Devido aos seus propósitos, as leis do governo civil dizem respeito à proteção dos bens civis contra violência; a salvação da alma fica inteiramente no âmbito da liberdade de cada um. Quando essas leis ordenam algo que ultrapassa esse âmbito e que é rejeitado pela consciência das pessoas: tais leis não as obrigam e elas têm direito de resistir a elas e desobedecê-las.
Há, contudo, certas coisas nas religiões que não podem ser toleradas pelo magistrado civil: (a) igrejas com ensinamentos contrários à moral e à sociedade; (b) igrejas que se autorizam a desobedecer à lei ou às autoridades civis; e (c) os que negam a existência de Deus – pois, para Locke, Deus é fundamento última da lei moral e a suspensão da crença nele elimina os nexos de confiança em que se baseiam todos os pactos humanos, eliminando, assim, a própria possibilidade de convivência social.
O magistrado não deve proibir as reuniões e assembleias religiosas, porque (a) não são menos livres que qualquer outra reunião civil; (b) os magistrados só costumam proibir as reuniões das igrejas alheias; (c) a religião não predispõe os homens à sedição e à revolta; (d) é, na verdade, a intolerância que torna essas reuniões hostis à autoridade (igrejas perseguidas pelo magistrado tendem a se tornar hostis a ele); e (e) implantado um regime de tolerância, tais reuniões serão pacíficas e tendentes a apoiar o magistrado civil, para manter sua liberdade.
Não tem incumbência de cuidado magisterial sobre as almas, mas apenas, como qualquer homem, um cuidado caritativo. Não pode forçar um homem a ser saudável ou rico contra a sua vontade; da mesma maneira, não pode salvar sua alma contra a sua vontade.
Pode-se fazer a objeção que há várias maneiras de ser saudável e rico, mas apenas uma de ser salvo. A isso, responde que: (a) mesmo que fosse verdade, restaria dúvida sobre qual seria essa maneira (cada um pensaria ser aquela que a sua própria religião recomenda); (b) o magistrado estaria na mesma posição de qualquer outro homem quanto à identificação e à escolha da via correta (poderia, sendo fiel de certa religião, supor que a sua é a verdadeira, mas também outro homem, fiel de outra igreja, se estivesse na posição de magistrado, suporia o mesmo em relação à sua religião); e (c) se o magistrado é livre para isso (para encontrar sozinho qual caminho leva à verdade), deve deixar que os outros sejam livres para esta tarefa na mesma medida.
Pode-se fazer a objeção de que tal decisão não cabe ao magistrado civil, mas à igreja, sendo o magistrado apenas o instrumento de imposição da via correta. A isso responde que: (a) a igreja da qual o magistrado seria instrumento seria apenas aquela da sua preferência; (b) é muito mais comum que a igreja seja influenciada pela corte do que a corte pela igreja; e, (c) logo, a situação em que o magistrado impõe os juízos da igreja é análoga aquela em que impõe suas próprias convicções religiosas. Relembra ainda que, devido à necessidade de convencimento íntimo, a imposição do magistrado não pode salvar a alma de quem quer que seja.
Libertos da dominação religiosa, os homens se reunirão em igrejas, as quais devem ser, em princípio, todas toleradas. A compreensão do modo como a tolerância do magistrado civil se exerce em relação às igrejas depende da distinção entre, de um lado, a forma externa e os ritos de culto e, de outro lado, as doutrinas e os artigos de fé.
Quanto à forma externa e aos ritos de culto, o magistrado não tem o poder de obrigar o uso de ritos ou cerimônias no culto a Deus, tendo em vista os já expostos argumentos da liberdade das igrejas e da necessidade de convencimento íntimo. Isso não quer dizer que o magistrado não tenha poder sobre as questões indiferentes (que não ajudam nem prejudicam a salvação). Esse poder o magistrado tem, mas o bem público, que é sua regra, jamais exigirá seu emprego para este caso. A igreja mesma tem poder de organização sobre as questões indiferentes de seu culto apenas na medida em que elas sejam simples circunstâncias, e não parte do culto em si, porque as que são parte do culto em si se limitam ao que foi posto pelas Escrituras, e não dependem da igreja. Da mesma maneira, o magistrado civil não tem poder de proibir os ritos e cerimônias já aceitos e usados no culto pelas igrejas que existem.
E se tais ritos e cerimônias envolvessem coisas desonestas e criminosas? Bem, estas não são permitidas nem mesmo fora do culto, não havendo motivo para o serem dentro dele. Mas se deve ter cuidado com a ideia de combater as igrejas que adotam práticas consideradas idólatras, porque (a) este motivo se presta para o combate a qualquer religião e culto (idólatra é sempre a religião do outro); (b) esta ideia se combina com interesses e varia com eles (o que é ou não idólatra varia com as circunstâncias da própria tolerância à religião alheia); e (c) tal mandamento (do combate à idolatria) está apenas na lei mosaica, mas não nos Evangelhos.
Quanto às doutrinas e aos artigos de fé, são em parte especulativos, em parte práticos. Quanto aos especulativos, não há muito a dizer, pois não podem causar injúria a outrem e recaem na necessidade de convencimento íntimo. Quanto aos práticos, existe certa sobreposição entre o que é moralmente exigido segundo a religião e segundo a sociedade civil. Essa sobreposição induz confusões, que devem ser evitadas.
Todo homem tem uma alma imortal apta à salvação, mas esta depende de sua fé e de suas ações nesta vida; além disso, todo homem tem também uma vida temporal na terra, que gera necessidades de conveniências externas, para as quais surgem a sociedade e o governo civil. Devido aos seus propósitos, as leis do governo civil dizem respeito à proteção dos bens civis contra violência; a salvação da alma fica inteiramente no âmbito da liberdade de cada um. Quando essas leis ordenam algo que ultrapassa esse âmbito e que é rejeitado pela consciência das pessoas: tais leis não as obrigam e elas têm direito de resistir a elas e desobedecê-las.
Há, contudo, certas coisas nas religiões que não podem ser toleradas pelo magistrado civil: (a) igrejas com ensinamentos contrários à moral e à sociedade; (b) igrejas que se autorizam a desobedecer à lei ou às autoridades civis; e (c) os que negam a existência de Deus – pois, para Locke, Deus é fundamento última da lei moral e a suspensão da crença nele elimina os nexos de confiança em que se baseiam todos os pactos humanos, eliminando, assim, a própria possibilidade de convivência social.
O magistrado não deve proibir as reuniões e assembleias religiosas, porque (a) não são menos livres que qualquer outra reunião civil; (b) os magistrados só costumam proibir as reuniões das igrejas alheias; (c) a religião não predispõe os homens à sedição e à revolta; (d) é, na verdade, a intolerância que torna essas reuniões hostis à autoridade (igrejas perseguidas pelo magistrado tendem a se tornar hostis a ele); e (e) implantado um regime de tolerância, tais reuniões serão pacíficas e tendentes a apoiar o magistrado civil, para manter sua liberdade.
Deveres do magistrado na questão da tolerância